Ricardo Japiassu

Resenha crítica de HOLZMAN, Lois & NEWMAN, Fred. Lev Vygotsky: cientista revolucionário. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Loyola, 2002, 241 páginas. Publicada na Revista da FAEEBA Educação e Contemporaneidade

Para Vygotsky e para nós, o marxismo digno do nome é uma teoria e uma prática da revolução. Não é nem uma análise abstrata do capital (“uma enfiada de citações”) nem uma política programática de um partido dogmático-sectário e/ou de uma burocracia estatal. É um guia prático cotidiano (para pessoas comuns) para transformar o mundo progressistamente, para fazer história. (p.187)

A citação acima, extraída deste polêmico livro com o qual nos presenteia a Editora Loyola, resume, no meu entendimento, o objetivo geral dos autores: sinalizar uma abordagem “marxiana” ao materialismo histórico dialético que possa nos auxiliar a ultrapassar os “limites” de uma interpretação “marxista” stricto sensu – ou o aprisionamento dos múltiplos sentidos da filosofia advogada por Marx e Engels a apenas um “único” ou “oficial” – e supostamente “correto” – significado.

A tradução competente de Marcos Bagno possibilita ao leitor fácil acesso ao pensamento desta dupla de psicólogos e teatro-educadores novaiorquinos, fundadores do Instituto da Costa Leste para Psicoterapia de Curta Duração de/em Grupo de Nova Iorque nos Estados Unidos. Além disso, por ser rigorosamente elaborada, a tradução de Bagno expõe com honestidade os fundamentos teórico-metodológicos do que os autores denominam Terapia Social.

O livro encontra-se organizado em oito capítulos ao longo dos quais Holzman e Newman buscam expor, primeiramente, o contexto histórico da produção intelectual vygostkiana; em seguida, o panorama contemporâneo da reverberação crescente do seu pensamento – particularmente nos Estados Unidos. Só então, logram posicionarem-se na cena norteamericana – e planetária – da trama urdida em torno à teoria histórico-cultural da atividade/CHAT (Cultural Historical Activity Theory) [teoria histórico-cultural da atividade].

A principal tese, defendida pelos autores, ao longo das páginas fascinantes deste livro, é a de que:

O pensamento de Vygotsky … não foi radical simplesmente no contexto da psicologia e da metapsicologia dominantes de sua época, mas radical também no âmbito da própria tradição marxista. Afinal, ele atacou de frente a questão da consciência e da psicologia, o que Marx não fizera – com isso, levou adiante a própria metodologia marxista … Por mais rico que seja o conteúdo de suas descobertas, o valor de seu trabalho reside em seu método – em que os resultados do método e o método mesmo são inseparáveis … simplesmente aplicar Vygotsky não é vygotskiano. (p. 29)

Holzman e Newman apresentam, nos três primeiros capítulos do livro, um mapeamento “crítico” do pensamento contemporâneo ancorado nas idéias vygotskianas. Eles concebem o “palco” do debate em torno aos escritos de Vygotsky como uma cena “disputada” ferozmente por dois grandes “elencos”: (1) os vygotskianos “revolucionários” e (2) os vygotskianos “reformistas”. Os primeiros, engajados na busca de uma práxis informada pelo método “instrumento-E-resultado” originalmente proposto por Lev Vygotsky; os últimos, comprometidos com a aplicação do pensamento de Vygotky em diversificados contextos de atividade tendo em vista fins muito precisos como a reformulação das idéias vygotskianas com o objetivo de as adequar ao método “pragmatista” do “instrumento-PARA-resultado”.

No quarto capítulo, intitulado A zona de desenvolvimento proximal: uma unidade psicológica ou uma unidade revolucionária? os autores nos explicam que a ZDP é “a descoberta psicológica-metodológica mais importante de Vygotsky” (p.71). Eles a entendem sobretudo enquanto MÉTODO, e não apenas como “ferramenta” ou construto teórico possível de aplicação por diversificadas abordagens pedagógicas à problemática do desenvolvimento humano. Holzman e Newman advogam intransigentemente a defesa da ZDP como um conceito que refere exemplarmente o método “instrumento-E-resultado” desenvolvido por Lev Vygotsky: “a ZDP nada mais é do que … o lugar da atividade revolucionária” (p.82).

O entendimento da dupla de psicólogos norteamericanos é o de que os vygotskianos “reformistas” (re)significaram, de acordo com suas necessidades “pragmáticas”, o conceito de ZDP:

Em vez da metodologia radicalmente monista de Vygotsky ser empregada para pôr em xeque o mentalismo e o dualismo fundamentais da psicologia cognitiva, a ZDP, seu instrumento-e-resultado, é transformada num instrumento “mais social” para o resultado, reforçando assim o mentalismo e o dualismo … A busca contínua de Vygotsky por um método e sua descoberta da unidade de estudo adequada à psicologia foram, em nossa opinião, pragmatizadas … Vygotsky deixou a porta aberta para a objetivação pragmática da ZDP. É nossa tarefa trancar essa porta com força! (p. 87-102)

Os capítulos 5, 6 e 7 do livro apresentam a convincente argumentação dos autores na defesa de seu ponto de vista. Por fim, Holzman e Newman, no oitavo capítulo, concluem sua exposição sinalizando o “não-final” do debate contemporâneo a respeito das teses fundamentais de Lev Vygotsky. Ali, eles descrevem – embora de maneira muito aligeirada e breve – como ambos vêm incorporando o método do “instrumento-E-resultado” (a ZDP) nas intervenções terapêutico-pedagógicas conduzidas no Instituto da Costa Leste e no Teatro Castillo (palco privilegiado para os experimentos cênicos, terapêuticos e pedagógicos da Terapia Social).

No último capítulo, os autores apresentam uma proposta concreta para o resgate da “atividade revolucionária” e, conseqüentemente, para o desenvolvimento cultural humano: a Terapia Social.

Embora suas idéias possam trazer – e de fato, trazem – algum frescor à disputa epistemológica entre abordagens histórico-culturais “reformistas” e “revolucionárias” à atividade tipicamente humana, observam-se alguns “nós” na exposição da tese dos autores – que, na minha opinião, precisam ainda ser “desatados”.

Refiro-me particularmente às afirmações que ambos fazem, ao longo do sexto capítulo, intitulado Reforma e revolução no estudo de pensamento e linguagem. Neste capítulo, no subtítulo O Vygotsky dos reformadores, mais precisamente na página 137, Holzman e Newman afirmam que “a atividade humana não é mediada de modo nenhum.” [sic]

Ora, o conceito de MEDIAÇÃO é central nas abordagens histórico-culturais ao psiquismo humano.[1]

Eu diria que este conceito é a “estrela” em torno à qual se movimenta todo o “sistema planetário” das abordagens histórico-culturais ao desenvolvimento. Trata-se do principal artefato teórico que as distingue das demais abordagens construtivistas e sócio-interacionistas, como as de Wallon e Piaget, por exemplo.

As teorias de Wallon, Piaget e Vygotsky destacam, algumas mais outras menos: (1) a atividade do sujeito em seu movimento de apropriação dos objetos do conhecimento, (2) a importância do meio social na impregnação cultural do sujeito e (3) o papel relevante da afetividade nos processos cognoscitivos. [2]

Todavia, diferentemente de Wallon e Piaget, Vygotsky [3] nos alerta para o fato de que a relação interativa do sujeito com os objetos do conhecimento não se dá “diretamente”. Ele foi, incontestavelmente, o primeiro a chamar nossa atenção para o fato de que essa relação é MEDIADA pela cultura, ou seja, pelo pensamento verbal, pela linguagem.

Então, o importante papel MEDIADOR que a linguagem ocupa na formação do psiquismo tipicamente humano é o grande diferencial das abordagens histórico-culturais ao desenvolvimento – se, e quando, comparadas a outras concepções construtivistas da constituição do psiquismo humano.

Penso que é preciso que os autores tenham oportunidade de esclarecer mais – e melhor – o que estão querendo dizer ao afirmarem que a atividade humana “não é mediada de modo nenhum” (p. 137).

Talvez, com a posterior publicação no Brasil dos outros livros da dupla – já há muito disponíveis em inglês – seja possível para nós, leitores, desfazermos os “nós” conceituais constatados em Lev Vygotsky: cientista revolucionário.

Apesar  do “nó” exposto acima – e de outros “becos sem saída” que se encontram ao longo da exposição de Holzman e Newman – o livro revela-se leitura fundamental e indispensável para todos os interessados em conhecer e pensar o desenvolvimento humano na perspectiva da psicologia sócio-histórica.

Referências bibliográficas

BANKS-LEITE, Luci (1991) As dimensões interacionista e construtivista em Vygotsky e Piaget. In: Cadernos CEDES, n. 24. Pensamento e linguagem: estudos na perspectiva da psicologia soviética. Campinas: Unicamp, pp.30-37.

CASTORINA, José Antônio e outros (1995) Piaget-Vygotsky: novas contribuições para o debate. São Paulo: Ática.

JAPIASSU, Ricardo (2000) Ensino do teatro nas séries iniciais da educação básica: a formação de conceitos sociais no jogo teatral. São Paulo: ECA-USP (Dissertação de mestrado).

VYGOTSKY, L. S. (1987) Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Ciudad de La Habana: Científico Técnica.

[1] BANKS-LEITE, Luci (1991) As dimensões interacionista e construtivista em Vygotsky e Piaget. In: Cadernos CEDES, n. 24. Pensamento e linguagem: estudos na perspectiva da psicologia soviética. Campinas: Unicamp, pp.30-37; JAPIASSU, Ricardo (2000) Ensino do teatro nas séries iniciais da educação básica: a formação de conceitos sociais no jogo teatral. São Paulo, ECA-USP. (Dissertação de mestrado)
[2] CASTORINA, José Antônio e outros (1995) Piaget-Vygotsky: novas contribuições para o debate. São Paulo: Ática.
[3] VYGOTSKY, L. S. (1987) Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Ciudad de La Habana: Científico Técnica.