Artigo publicado pela revista CRIANÇAS ESPECIAIS em julho de 1997

Profª Drª Lois Holzman
Diretora de pesquisas do Instituto da Costa Leste para Psicoterapia de Curta Duração de/em Grupo – Nova Iorque

Tradução de Ricardo Japiassu
Texto original em word.doc


Que imagem vem à sua mente quando você escuta a expressão “palcos da vida”? [“Stages of life” = “palcos da vida”. “Stage” em inglês significa “palco” e também “estágio”] Uma escada ou um teatro? Para a maioria das pessoas deve ser a primeira imagem – ou outra imagem qualquer de degraus – que, em geral, prevalece. Afinal, desde os mais antigos e grandes especialistas na natureza humana – Freud, Piaget e Erikson – aos mais recentemente conhecidos pesquisadores contemporâneos do assunto, todos nos dizem que o processo da vida humana é melhor entendido como uma série progressiva de “estágios” pelos quais passamos.

Eu prefiro no entanto a imagem do teatro – e explico porquê. Acredito que nós, seres humanos, CRIAMOS nosso próprio desenvolvimento – porque o desenvolvimento não é algo que acontece espontaneamente conosco. O modo como criamos nosso próprio desenvolvimento é exclusivamente através da instalação de palcos/estágios em que podemos ATUAR/PERFORMAR nosso crescimento. Então, para mim, palcos/estágios desenvolvimentais são como lugares destinados à performance ou atuação que criamos em qualquer ambiente – em casa, na escola, no local de trabalho, em toda a parte. Eu contarei a vocês sobre alguns palcos/estágios que tenho auxiliado a criar. Tentem ATUAR/PERFORMAR entendendo-os como ensaios para a criação de seus próprios palcos/estágios junto às suas crianças e às pessoas com as quais vocês trabalham e convivem.

Mas, antes, eu devo dizer uma ou duas palavras sobre AMBIENTE numa perspectiva teórica. Este termo é usualmente entendido como espaço, local, “pano de fundo” ou contexto no qual as coisas acontecem. Nos estudos sobre o desenvolvimento infantil, por exemplo, afirmações são feitas tradicionalmente pressupondo que alguns fatores ambientais aceleram e outros retardam o processo “normal” de desenvolvimento da criança: lares abastecidos de livros supostamente estimulam e contribuem para o precoce letramento do sujeito; crescer em um ambiente hostil – costuma-se garantir – causa excesso de agressividade e manifestações de violência por parte da criança; e estudos recentes têm demonstrado que conversar bastante com os filhos e crianças pequenas é fundamental para enriquecer o seu processo de desenvolvimento cognitivo. Esta compreensão de AMBIENTE encontra-se de mãos dadas com a visão de que o desenvolvimento é algo que nos acontece.

Você não vai se surpreender com o fato de eu possuir um entendimento diferente de AMBIENTE – como não sendo algo pré-formatado no qual a gente se encontre DENTRO e que deflagra nosso desenvolvimento, mas o lugar vivido (ou palco/estágio) criado colaborativamente pelas pessoas. Muito mais ATIVIDADE do que contexto, o AMBIENTE é criado, formatado e (re)formatado como uma parte indissociada do processo de desenvolvimento das pessoas. 

Pesquisas sugerem que a maioria dos abusos (de drogas, de poder, de violência sexual, física, afetiva e simbólica) tem a ver com o sentimento das pessoas de não terem escolha. Nas minhas próprias investigações muitos pré-escolares dizem que “alguma coisa deu neles” ou que “eles perderam o controle” ou ainda que “não tinham escolha” quando machucam outra criança. Apenas falar para uma criança que ela poderia ter feito outra coisa, até mesmo sugerir-lhe novos modos de agir pode por fim a uma atuação indesejada por um certo tempo – ou não. O que eu defendo e tenho visto funcionar é o apoio às crianças para que elas possam criar novas opções de atuação/performance. Uma das coisas que eu tento dividir com os pais e professores, de todas as maneiras possíveis, é quão importante vem a ser ajudar as crianças a criarem novas opções de como agir e pensar. Se queremos que elas sejam boas “tomadoras de decisão” – e saibam efetivamente escolher as melhores opções – então elas precisam praticar bastante este “fazer escolhas” e “tomar decisões”.

É assim que a criação de palcos/estágios desenvolvimentais ocorre. O exemplo a seguir (extraído de um livro meu publicado pela Erlbaum intitulado Schools for Growth: Radical Alternatives to Traditional Educational Models [Escolas para o crescimento: Alternativas Radicais aos Modelos Educacionais Tradicionais]) relata um incidente que ocorreu na Escola Bárbara Taylor do Brooklyn/Nova Iorque – um laboratório de ensino fundamental que foi um dos nossos palcos/estágios desenvolvimentais. 

Justin (11 anos) estava deitado sobre o tapete rodeado por várias crianças e por um adulto ajoelhado ao seu lado, examinhando seu estômago (sua camisa havia sido levantada até o pescoço). Len, o adulto, era diretor de aprendizado da escola e estava segurando uma caixa de lenços de papel logo acima do umbigo de Justin. Atraída pela cena e pela observação atenta das crianças, perguntei-lhes o que estava acontecendo. “Estamos atuando uma cirurgia” me disseram: “a remoção cirúrgica da imaturidade.” 

Mais tarde, neste mesmo dia, Justin e Len atuaram um “intervalo commercial” durante uma cena de circo criada por Alice (8 anos) e Julia, outra diretora de aprendizado da Bárbara Taylor. Len e Justin entraram no palco (área de jogo) andando. Len disse “Justin, você não irá ao seu fonoaudiólogo hoje.” Justin interrompeu sua caminhada, berrou, gritou e jogou-se ao chão num assustador ataque de raiva. Len olhou para a platéia de observadores por um momento, retirou alguns lenços de papel da caixa que estava segurando e disse, embolando-os em pequenas bolinhas que ameaçava colocar na boca de Justin, “a cura milagrosa – ‘Porções mágicas’ [Porções de maturidade].” Justin evitava tomar as “pílulas”. Ele se levantou e os dois recomeçaram a cena de novo. Len: “Justin, você não vai ao fonoaudiólogo hoje.” Justin olhou para ele e calmamente disse, “Tudo bem, então eu vou para casa.” A platéia os aplaudiu.

Diagnosticado como portador de “dificuldade de aprendizagem”, Justin havia frequentado escolas especiais até matricular-se na Escola Barbara Taylor (cerca de três meses antes deste incidente). Seus pais acreditavam que ele havia alcançado um “plateau” [um patamar sem chance de qualquer elevação] conforme haviam ouvido dizer que ocorria com crianças como Justin, e que ele não poderia se desenvolver mais além daquele ponto. Justin possuia um longo histórico de ataques de raiva, que a equipe de professores e os alunos da escola Bárbara Taylor tentavam, juntamente com ele, resolutamente mudar.

Justin é um artista cênico (um artista performático, um “performer”). Todos nós o somos. Atuando/performando é como nós aprendemos e (nos) desenvolvemos. O renomado psicólogo russo Lev Vygotskii nos disse isso já nos anos 20 do século passado. É através da performance/atuação – realizando o que se encontra além das nossas possibilidades (apenas em determindado momento de nossas vidas) – que, quando somos pequeninos, aprendemos a fazer uma infinidade de coisas que ainda não sabemos fazer muito bem. Vygotskii descreveu entusiasticamente como os bebês se transformam de balbuciadores em falantes fluentes de sua língua materna através da performance/atuação. Quando eles fazem-de-conta criativamente que são outros, eles estão simultaneamente atuando/performando (se tornando) eles mesmos. Atuar/performer é um modo de ser “quem nós somos” e crier algo novo – no caso, um falante fluente – através do fazer-de-conta que é “outro”. 

O que ocorre, quando performamos/atuamos nosso modo se ser e de vir-a-ser nas interações culturais e sociais, é que, com isso, atuamos/performamos nosso contínuo desenvolvimento. Muito do que aprendemos (através da performance/atuação) torna-se rotinizado e automatizado em nossa atividade. Nós nos tornamos tão hábeis na atuação de papéis sociais que deixamos de criar novos modos de agir para nós mesmos. Desenvolvemos uma identidade como “aquele tipo de pessoa” – alguém que faz coisas e sente de uma determinada maneira. Qualquer coisa que fuja disso faz com que a maioria de nós logo pense não se tratar da “verdade” ou de “quem nós somos”. 

O desenvolvimento afetivo de Justin estava “congelado”; Ele repetidamente fazia o que ele havia aprendido a fazer – ter um acesso de raiva. Como a maioria de nós, ele não tinha consciência que esta sua “resposta” particular à frustração, às mudanças ou desapontamentos era (é) construída por ele próprio e pelos outros. Não lhe ocorria (talvez não pudesse mesmo lhe ocorrer, por qualquer razão) que existe uma infinidade de coisas que alguém pode fazer ou dizer quando se fica sabendo que os planos mudaram.

Criar um ambiente para que Justin pudesse atuar/performar – tanto seus ataques de raiva como novos modos de agir – pode reiniciar seu crescimento afetivo e social. Ao participar da criação de palcos/estágios e ao atuar/performar neles, Justin vai além dele mesmo, experimenta novas “respostas”, vivencia ser outro que não ele mesmo, enfim, (se) desenvolve. Performar/atuar desafia a crença amplamente aceita de que nossas ações correspondem, sempre, ao que sentimos. (Quando vivemos isso ou quando isso acontece com aqueles a quem conhecemos nós superamos esta crença, porque não poderia haver algo como o Teatro ou outras modalidades de entretenimento cultural. Atores deprimidos atuariam deprimidos independentemente da peça e do papel que estivessem performando). Ao criar o palco/estágio e ao atuar nele, observa-se que muda o lugar de Justin e a relação dele para com as suas chamadas “crises emocionais”, auxiliando-o a criar, com outros, novas formas de vida afetiva. Isso gera um ambiente modificado (que é inseparável dele e dos outros). A diferença entre Justin atuar/performar seu ataque de raiva e seu típico modo de agir tendo de fato um ataque de raiva é a diferença entre (se) desenvolver e não (se) desenvolver.

Outro programa que eu e meus colegas temos implementado é Produções Grávidas, um projeto extra-classe planejado para lidar com a gravidez indesejada na adolescência de modo desenvolvimental. A primeira vez que este programa foi testado, um assistente social e um artista performático, treinados em nossa abordagem, dirigiram-se para uma das regiões mais pobres e devastadas da cidade de Nova Iorque com um folheto (flier) anunciando o projeto, recrutando pré-adolescentes e adolescentes de ambos os sexos (todos rotulados como jovens em situação “de risco” social). Produções Grávidas tornou-se uma companhia produtora de eventos que os jovens construíram – criando narrativas e cenas de suas vidas, produzindo cartazes e programas (fliers) para convidar a comunidade para as suas apresentações e ensaios. Seis semanas depois, 500 pessoas – vizinhos, pais e outros familiares, a maioria dos quais sequer haviam pisado em uma escola por anos – compareceram à primeira apresentação do grupo no teatro da escola Bárbara Taylor.

Ao trabalharem juntos, aqueles jovens encontravam-se constantemente envolvidos em propostas de atividade que exigiam “tomada de decisão” e oportunidades para a criação de novas opções – participar ou não, “zoar” alguém ou não, assumir o risco de falar abertamente sobre sexo ou não, responsabilizar-se pela diversão de outros, criar uma música, idealizar um cartaz (flier) etc. Eles experimentaram com sucesso criar em conjunto e constituir um grupo. Produzindo eventos culturais que abordavam as complexas questões sociais, econômicas e afetivas relacionadas às práticas sexuais, à sexualidade, ao crescimento e à gravidez, criando sua própria companhia produtora de espetáculos, estes pré-adolescentes e adolescentes aprenderam que podiam fazer todo tipo de escolhas e assumirem responsavelmente suas opções. Isso poderia incluir ou não a decisão de engravidar ou quando engravidar.

Outro de nossos projetos é o Todos são Estrelas Rede de Mostra de Talentos. Nestes doze anos, o Todos são Estrelas tornou-se reconhecido como um dos mais eficientes programas metropolitanos anti-violência da juventude novaiorquina. (Mais de 30.000 jovens, entre 4 e 21 anos, já haviam participado da produção e atuação nas 65 edições do programa em Nova Iorque e outras grandes cidades norteamericanas no ano de 1996). O que ocorre no Todos são Estrelas é a atuação/performance – não apenas musical, cênica, plástica, e em tudo relacionado à produção de uma mostra de talentos (show de talentos), que inclui a operação de variados equipamentos necessários ao funcionamento do palco, a formação de platéias e sua segurança. Juntos, e com um pequeno número de adultos treinados para isso, jovens assumem a responsabilidade pelo que produzem e de como produzir. Ao construírem sua própria organização cultural – muitos, muitos palcos/estágios desenvolvimentais – muito além de simplesmente “aparecerem” em shows de talentos produzidos por outros, os membros do Todos são Estrelas criam seu próprio desenvolvimento afetivo, social e cultural. Desde 1995 eles organizam uma premiação anual para homenagear representantes do Governo, da Educação, da Indústra Cultural e outras áreas que apoiam o desenvolvimento juvenil. Em 1994 eu viajei a Moscou com o produtor e três jovens do Todos são Estrelas para participar do simpósio “Desenvolver(se) em um mundo violento” [Developing in a violent world] durante um congresso internacional de acadêmicos vygotskianos (onde, a partir da solicitação dos psicólogos ali presentes, e de modo improvisado, eles organizaram com sucesso uma mostra de talentos).

O Todos são Estrelas ajuda jovens a serem outros que não quem eles são, numa cultura na qual eles costumam ser identificados como possuindo “comportamento destrutivo”, definidos por adultos como não possuindo nada a oferecer – o que faz com que muitos deles adotem esta identidade e ajam de modo a corresponder à expectativa de atuação deste papel. Mas, participar do Todos são Estrelas requer que eles performem como construtores e realizadores. Ao atuarem deste modo, eles descobem que podem ser diferentes. Neste processo, eles criam novas opções para quem e como querem ser – apesar das terríveis condições materiais de suas vidas, caracterizada por abusos de toda natureza, violência, regras e papéis rígidos.

O Todos são Estrelas não está focado na supressão da violência; seu objetivo é a criação de desenvolvimento. Não se trata de ensinar aos jovens sobre o impacto social da violência; ele foi planejado para ensina-los a criar seu próprio desenvolvimento. Por que? O melhor modo de dizer isso é fazer minhas as palavras do filósofo Ludwig Wittgenstein (ele se dirigia a outros filósofos, mas tudo bem): “Qual a sua doença? Você pergunta isso repetidamente … Como alguém pode fazê-lo parar de repetir isso? Chamando sua atenção para algo diferente.”

Desenvolver (se) – criar palcos/estágios para a vida – é este algo diferente.

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Lev Vygotskii foi o criador da psicologia marxista nos anos 20 e 30 do século passado. Ele desafiou os métodos tradicionais da psicologia e os saberes até então existentes sobre o aprendizado e desenvolvimento humanos. Ele nos forneceu idéias revolucionárias sobre aprendizado, ensino e desenvolvimento: estas são atividades sociais, históricas e culturais, portanto não individualizadas, nem processos exclusivamente mentais e internos; o aprendizado não ocorre só após o desenvolvimento – ele gera e conduz o desenvolvimento; crianças aprendem e (se) desenvolvem através da “atuação como outro mais alto do que elas”
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Ludwig Wittgenstein é amplamente considerado o mais original, influente e enigmático filósofo do século 20. Desafiando os fundamentos da filosofia, psicologia e lingüística, Wittgenstein acreditava que nossas crenças em significados profundos e processos de pensamento exclusivamente internos nos “aprisionava” e nos “enrijecia” a mente. Em seus escritos, ele nos convida a jogar “jogos de linguagem” – uma espécie de “terapia” que nos auxilia a ver os enunciados discursivos como “parte de uma atividade, ou de uma forma de vida”.
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Lois Holzman é diretora de pesquisas do Centro para o Aprendizado Desenvolvimental do East Side Institute for Group and Short Term Psychotherapy de Nova Iorque. 
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Os palcos para/em desenvolvimento apresentados aqui são programas promovidos pelo Projeto de Pesquisa Letramento Comunitário [Community Literacy Research Project (CLRP)], uma pequena organização, independente e sem fins lucrativos, sediada em New York City. Em 1996, the CLRP – através dos esforços de seus captadores de recursos, todos voluntarios – levantou mais de U$ 1.5 milhão de dólares de adolescentes filhos da classe média americana. Também importante dizer que o modelo de levantamento de receita do CLRP reúne contribuições de todos aqueles engajados na construção de pontes para superar a distância social crescente entre as pessoas – que é responsável pela crise norteamericana, ao lado da perda de poder aquisitivo e da falta de confiança no Governo.